CAPÍTULO 1

O dia clareia, ou ao menos, tenta clarear, na pequena cidade de Avalon.
Seus habitantes começam a acordar, da mesma forma como sempre fizeram os seres humanos desde o tempo em que ainda não haviam descido das árvores, impulsionados pela luz do astro rei, apesar do astro rei não ter muita influencia neste lugar onde o céu está quase sempre cinza e encoberto de nuvens, e se preparam para mais um dia de sua rotina diária, seja ela qual for.
É interessante como a rotina diária de cada um possa ser tão importante para este ser que pretende mantê-la a todo custo, mesmo tendo absoluta certeza de que não gostariam de manter aquela rotina, muitas vezes entediante, cansativa e extremamente chata. Infelizmente para todos os primatas evoluídos que se autointitulam Homo Sapiens, esta rotina é necessária e, tão importante que, pensam alguns, poderia causar a aniquilação total da raça humana se alguém resolver mandá-la as favas e sais por ai curtindo a vida. E essa indesejável rotina diária não poupa ninguém, nem mesmo os alunos da única escola da cidade.
Entre estes alunos está Anne Velda, uma garota de doze anos que não se preocupa muito com sua aparência. Seu estilo padrão é formado por roupas surradas e cabelos um tanto quanto desgrenhados, como se acabasse de sair de uma feroz briga com o pente e houvesse perdido.
Não está nem ai com o que os outros vão pensar, ou falar, dela.
Nasceu nesta importante cidade isolada quase no limite sul do Brasil. Cidade esta normalmente conhecida apenas pelos seus habitantes e mais ninguém. Não bastasse o isolamento da cidade, Anne mora com sua mãe na área rural em um pequeno sítio bastante isolado do restante da cidade. Sua casa é pequena e construída de pequenos blocos de pedra cuidadosamente empilhados uns sobre os outros que dão a impressão de que vão desmoronar a qualquer momento, as janelas são venezianas, bastante velhas e desgastadas e o telhado com duas caídas é coberto de velhas telhas de barro cozido.
Transpassando o telhado, uma chaminé de tijolos se eleva e solta uma tênue fumaça, sinal que o fogão a lenha está aceso. O fogão, assim como na maioria das residências rurais do sul do Brasil, tem dupla função: cozinhar os alimentos e aquecer a casa. Abaixo do fogão, em uma caixinha de madeira, dois filhotes de gatinhos dormem despreocupados aquecidos pelo calor proporcionado pelo fogão enquanto sua mãe gata, esta sim preocupada, persegue a dona da casa em busca de alimento.
Brianna, a mãe de Anne segue para um pequeno estábulo, aquele lugar onde guardam as vacas, carregando um velho balde de metal enquanto é seguida pela gata, a preocupada mãe dos gatinhos. Ao contrário do que era esperado, dentro do estábulo não existem animais, apenas alguns objetos. Entre eles um cabresto, aquele acessório de couro usado justamente para prender as vacas.
Ela posiciona o balde de metal sob o cabresto e começa a passar sua mão esquerda ao longo do mesmo cabresto em um movimento constante para baixo enquanto repete uma série de palavras, uma espécie de mantra. Em pouco tempo começa a escorrer leite pelo objeto pingando no balde de metal.
O processo continua até que o balde fique completamente cheio, então Brianna o leva para dentro de casa, enche a travessa da gata, a agora não mais tão preocupada mãe dos gatinhos, com leite e as duas, Brianna e Anne tomam um delicioso e nutritivo café da manhã com leite fresco de vaca.
Como sempre Anne está ansiosa e feliz por ir à aula. Parece algo estranho para uma adolescente, porém, como sua residência fica em um local tão, tão afastado, diria até, quase no fim do mundo, a escola é o lugar onde pode ter contato com outros de sua idade.
Em outro ponto da cidade de Avalon, agora não mais na região rural e sim no centro da pitoresca e pequena (minúscula) cidade, mais dois alunos também se preparam para ir à escola, porém, diferentemente de Anne, estes não partilham da mesma alegria da garota.
- Não quero ir a esta escola! – Fala Maximiliano, nome dado em homenagem a seu avô, mas que prefere ser chamado de Max, à mesa tomando café com seu pai – Não aguento mais mudar de escola o tempo todo. – Reclama ele indignado.
- E você acha que eu gosto de viver assim? – Concorda Antonio Ukrytyski, popularmente conhecido pelos seus filhos como pai Toninho – Agora será diferente Max. – Promete ele - Não precisaremos nos mudar deste lugar, pelo jeito encontramos o lugar ideal para vivermos, quer dizer... um lugar isolado onde não nos encontrarão porque, ideal mesmo né, nunca é... – Toninho é famoso por ser azedo e resmungão, do tipo que está sempre reclamando de algo - Você poderá ter os amigos que quiser sem se preocupar que os deixará em breve. Agora ficaremos aqui em definitivo!
- Você já havia falado isso em outras cidades por onde passamos... – comenta Max enfiando na boca uma colherada de cereal matinal com iogurte.
- Eu não ficarei neste lugar! – Interrompe Lucíola, agora homenagem à avó de Antonio, que prefere ser chamada pelo apelido de Luca.
É incrível como brasileiro gosta de apelido, talvez se deva a dificuldade em se trocar oficialmente de nome e ter que conviver a vida inteira com um nome nada bonito e que seus pais gostaram ou com o qual quiseram homenagear alguém. Ela é irmã de Max e está chegando à mesa para também tomar café da manhã.
Luca é adepta da religião Wicca e gosta de manter um visual gótico e sombrio, com roupas pretas e maquiagem escura. Seu cabelo é curto estilo Chanel e pintado de azul, sua pele é bem branca e tenta mate-la sempre assim. Certamente não terá problemas nesta região fria e insalubre do sul do Brasil. Sentando-se a mesa, ela continua:
- Já vou fazer dezoito anos, ao contrário de certas pessoas que tem apenas treze – fala ela olhando para seu irmão Max em nítida provocação -, assim que terminar este ano, vou embora para um lugar menos... quer dizer, para um lugar que não seja completamente isolado. Voltarei para Curitiba!
Avalon é uma cidadezinha, na verdade, é basicamente uma vila, construída em um local ermo e de difícil acesso, praticamente isolada do restante do mundo. O lugar era considerado sagrado pelos seus antigos habitantes, os índios Carijós, obviamente expulsos pelos novos habitantes, os Europeus. A cidade é cercada quase que totalmente por montanhas e, em um de seus lados, por um mar agitado e gelado, alimentado pelas correntes marinhas originarias da antártica. Este mesmo mar castiga uma costa rochosa quase sem praias, repleta de paredões formando uma verdadeira muralha com pouquíssimos lugares para ancorar. A população da cidade, que poderia facilmente ser chamada de vila, não é de mais que três mil habitantes e, salvo poucas exceções, são todos descendentes dos primeiros imigrantes do lugar.
Diz à lenda que os primeiros habitantes de Avalon não chegaram. Foram jogados neste lugar.
Um navio inglês do século XVIII que seguia para Argentina foi pego por uma tempestade, algo comum nesta região e foi gentilmente jogado pelo mar contra os rochedos. Inexplicavelmente alguns sobreviveram, sempre alguém sobrevive, e acabaram gostando do lugar, dos índios (ou índias) Carijós e do isolamento e resolveram formar suas famílias por aqui. Com o tempo alguns voltaram à civilização e espalharam a noticia do lugar longe do alcance dos reinados, dos impostos e, principalmente, longe da santa inquisição católica que continuava perseguir supostos bruxos, bruxas, feiticeiros, alquimistas, hereges e todo tipo de gente que não agisse como eles queriam.
É o local perfeito para quem quer se esconder ou está procurando o isolamento. O próprio nome da cidade foi uma homenagem à ilha mítica, e oculta, de Avalon, aquela mesmo da lenda do Rei Arthur.
Até a chegada de uma rodovia estadual construída graças lobby dos fazendeiros locais que precisavam escoar sua produção, a única forma de chegar e sair da cidade era respirar fundo, fazer uma oração com muita fé e enfrentar o gelado e traiçoeiro mar em pequenos barcos que, não raras vezes, acabavam destroçados quando arremessados sem nenhuma piedade pelo mar contra os rochedos.
Certamente deveria haver bons motivos para vir ou para sair de Avalon.
- Confesso que sentirei uma pitada de inveja por você poder voltar para uma cidade grande... – fala Antonio pegando gentilmente nas mãos de sua filha Luca – mas, se esta é sua vontade, se será feliz assim, não posso impedi-la. Sentiremos saudades suas minha filha!
- Fale por você pai. Eu não sentirei saudades nenhuma! – Interrompe Max ao que Luca lhe faz uma careta de desdém. Lógico que sentirão falta um do outro, apesar das rusgas, típicas entre irmãos, eles se amam e, todos estes anos fugindo de um lugar para outro com seu pai, fez com que ficassem ainda mais próximos.
- Mas – continua pai Toninho -, após completar dezoito anos, poderá ir para onde quiser. Também gostaria de voltar para Curitiba. Infelizmente, como já conversamos, é impossível para mim. Para Curitiba ou para qualquer outro lugar...